terça-feira, 6 de abril de 2010

'Fiscal' da Santa Sé ilustra resposta aos casos de pederastia

Entrevista com mons. Charles J. Scicluna, da Congregação para a Doutrina da Fé 


CIDADE DO VATICANO, segunda-feira, 15 de março de 2010 (ZENIT.org).- Publicamos entrevista de monsenhor Charles J. Scicluna, promotor de justiça da Congregação para a Doutrina da Fé, fiscal do Tribunal da Santa Sé, que tem por tarefa investigar os delitos que a Igreja considera mais graves (delicta graviora): contra a Eucaristia, contra a santidade do sacramento da penitência e o delito contra o sexto mandamento (Não cometerás atos impuros), por parte especialmente de um clérigo com um menor de 18 anos.


Delitos que com um motu proprio de 2001, Sacramentorum sanctitatis tutela, reservaram-se à competência da Congregação para a Doutrina da Fé. De fato, o “promotor de justiça” é o encarregado, entre outras coisas, da terrível questão dos sacerdotes acusados de pederastia, escândalos que saltam periodicamente às páginas dos meios de comunicação.A entrevista de mons. Scicluna, de origem maltesa, foi publicada nesse sábado pelo jornal Avvenire.

–O senhor tem fama de rigoroso, e no entanto se acusa sistematicamente a Igreja Católica de ser tolerante com os chamados “padres pederastas”.
–Mons. Scicluna: Pode ser que no passado, talvez por um mal-entendido sentido de defesa do bom nome da instituição, alguns bispos, na prática, tenham sido muito indulgentes com este triste fenômeno. Eu digo na prática porque, no âmbito dos princípios, a condenação por esta tipologia de delito sempre foi firme e inequívoca. Pelo que diz respeito apenas ao século passado, basta recordar a famosa instrução Crimen Sollecitationes, de 1922.

–Mas não era de 1962?
–Mons. Scicluna: Não, a primeira edição remonta-se ao pontificado de Pio XI. Mais tarde, com o beato João XXIII, o Santo Ofício ocupou-se de uma nova edição para os padres conciliares, mas a tiragem foi só de duas mil cópias, que não bastaram para a distribuição, adiada sine die. De todas as formas, tratava-se de normas de procedimento nos casos de solicitudes durante a confissão e de outros delitos mais graves de tipo sexual, como o abuso sexual de menores.

–No entanto, eram normas em que se recomendava o segredo...
–Mons. Scicluna: Uma má tradução ao inglês desse texto deu motivo a que se pensasse que a Santa Sé impunha o segredo para ocultar os atos. Mas não era assim. O segredo de instrução servia para proteger a boa fama de todas as pessoas envolvidas, em primeiro lugar as vítimas, e depois os clérigos acusados, que têm o direito – como qualquer outra pessoa – à inocência presumida até que se demonstre o contrário. A Igreja não gosta da postura de conceber a justiça como um espetáculo. A normativa sobre os abusos sexuais nunca foi interpretada como proibição de denúncia às autoridades civis.

–No entanto, esse documento é sempre citado para acusar o pontífice atual de ter sido – como prefeito do antigo Santo Ofício – o responsável objetivo de uma política de acobertamento dos fatos por parte da Santa Sé.
–Mons. Scicluna: É uma acusação falsa e uma calúnia. A propósito, permito-me assinalar alguns dados. Entre 1975 e 1985, não aparece que se tenha submetido à atenção de nossa congregação algum aviso de casos de pederastia por parte de clérigos. De todas as formas, após a publicação do Código de Direito Canônico de 1983 houve um período de incerteza acerca do elenco de delicta graviora reservados à competência deste dicastério. Só com o motu proprio de 2001, o delito de pederastia voltou a ser de nossa exclusiva competência. Desde aquele momento, o cardeal Ratzinger demonstrou sabedoria e firmeza na hora de tratar esses casos. Mais ainda. Deu prova de grande valor, enfrentando alguns casos muito difíceis e espinhosos, sine acceptione personarum. Portanto, acusar o pontífice de ocultação é, repito, falso e calunioso.

–Que acontece se um sacerdote é acusado de um dos delitos mais graves (delictum gravius)?
–Mons. Scicluna: Se a acusação é verossímil, o bispo tem a obrigação de investigar tanto a credibilidade da denúncia como o objeto da mesma. E se o resultado da investigação prévia é atendível, já não tem a faculdade de dispor em matéria e deve referir o caso a nossa congregação, onde será tratado pelo departamento disciplinar.

–Quem forma parte deste departamento?
–Mons. Scicluna: Junto a mim, que por ser um dos superiores do dicastério devo me ocupar de outras questões, há também um chefe de departamento, o padre Pedro Miguel Funes Díaz, sete eclesiásticos e um penalista leigo que acompanham esses procedimentos. Outros oficiais da congregação dão sua valiosa contribuição segundo seus diversos idiomas e competências.

–Diz-se que esse departamento trabalha pouco e com lentidão...
–Mons. Scicluna: É uma observação injusta. Em 2003 e 2004, uma avalanche de casos cobriu nossas mesas. Muitos procediam dos Estados Unidos e se referiam ao passado. Nos últimos anos, graças a Deus, o fenômeno tem-se reduzido muito. E, portanto, tentamos tratar os casos novos em tempo real.

–Quantos trataram até agora?
–Mons. Scicluna: Nos últimos nove anos (2001-2010), analisamos as acusações relativas a cerca de 3.000 casos de sacerdotes diocesanos e religiosos concernentes a delitos cometidos nos últimos 50 anos.

–Quer dizer, três mil casos de sacerdotes pederastas?
–Mons. Scicluna: Não é correto definir assim. Podemos dizer que em cerca de 60% desses casos, trata-se mais de atos de “efebofilia”, ou seja, devidos à atração sexual por adolescentes do mesmo sexo. Outros cerca de 30% se tratam de relações sexuais. 10% são atos de pedofilia verdadeira e própria, isto é, determinados pela atração sexual por crianças impúberes. Os casos de sacerdotes acusados de pedofilia verdadeira e própria são, então, cerca de 300, em nove anos. São sempre muitos, é inquestionável, mas há de se reconhecer que o fenômeno não está tão difundido como se pretende.

–Dos três mil acusados, quanto foram processados e condenados?
–Mons. Scicluna: Podemos dizer que em 20% dos casos houve processo penal ou administrativo, verdadeiro e próprio, que normalmente ocorreu nas dioceses de procedência – sempre sob nossa supervisão – e, só raramente, aqui em Roma. Fazendo assim se agiliza o procedimento. Em 60% dos casos, sobretudo devido à idade avançada dos acusados, não houve processo, mas se ditaram contra eles normas administrativas e disciplinares, como a obrigação de não celebrar missas com os fiéis, de não confessar, de levar uma vida retirada e de oração. Há que reafirmar que nestes casos, entre os quais houve alguns de grande impacto, dos que se ocuparam os meios de comunicação, não se trata de absolvições. Não houve uma condenação formal, mas se uma pessoa foi obrigada ao silêncio e à oração, será por algo.

–Resta analisar 20% dos casos...
–Mons. Scicluna: Em 10% dos casos, particularmente graves e com provas, o Santo Padre assumiu a dolorosa responsabilidade de autorizar um decreto de demissão do estado clerical. Trata-se de um procedimento gravíssimo, empreendido administrativamente, mas inevitável. Nos restantes 10% dos casos, os próprios clérigos acusados pediram a dispensa das obrigações derivadas do sacerdócio, que foi aceita com prontidão. Os sacerdotes implicados nestes últimos casos tinham em seu poder material de pornografia pederasta e por isso foram condenados pelas autoridades civis.

–Qual é a procedência destes três mil casos?
–Mons. Scicluna: Sobretudo dos Estados Unidos, que entre 2003-2004 representavam ao redor de 80% da totalidade dos casos. Até 2009, a porcentagem norte-americana diminuiu, passando a ser a fatia de 25% dos 223 novos casos assinalados em todo o mundo. Nos últimos anos (2007-2009), efetivamente, a média anual dos casos assinalados à Congregação em todo o mundo foi de 250 casos. Muitos países registram só um ou dois casos. Aumenta, portanto, a diversidade e o número dos países de procedência dos casos, mas o fenômeno é muito limitado. Há de se ter em conta que são 400.000 no total os sacerdotes diocesanos e religiosos no mundo. Essa estatística não corresponde com a percepção criada quando casos tão tristes ocupam as primeiras páginas dos jornais.

–Dizia há pouco que os processos, próprios e verdadeiros, englobam 20% dos três mil casos examinados nos últimos anos. Todos resultaram na condenação dos acusados?
–Mons. Scicluna: Muitos processos já celebrados se resolveram com a condenação do acusado. Mas tampouco faltaram outros em que o sacerdote foi declarado inocente ou em que as acusações não foram consideradas ou suficientemente provadas. De qualquer modo, em todos os casos, analisam-se sempre não apenas a culpabilidade ou não culpabilidade do clérigo acusado, mas também o discernimento sobre sua idoneidade ao ministério público.

–Uma acusação recorrente às hierarquias eclesiásticas é que não denunciam também às autoridades civis os delitos de pedofilia.
–Mons. Scicluna: Em alguns países de cultura jurídica anglosaxã, mas também na França, os bispos que sabem, fora do segredo sacramental da confissão, que seus sacerdotes cometeram delitos estão obrigados a denunciá-los às autoridades judiciais. Trata-se de um dever pesado, porque estes bispos estão obrigados a realizar um gesto como o de um pai que denuncia seu filho. Apesar de tudo, nossa indicação nestes casos é respeitar a lei.

–E nos casos em que os bispos não estão obrigados pela lei?
–Mons. Scicluna: Neste casos, não impomos aos bispos que denunciem os próprios sacerdotes. Nós os alentamos a se dirigir às vítimas para convidá-las a elas mesmas denunciarem estes sacerdotes dos quais foram vítimas. Ademais, os convidamos a proporcionar toda a assistência espiritual, mas não só espiritual, a estas vítimas. Em um recente caso referente a um sacerdote condenado por um tribunal civil italiano, esta Congregação sugeriu precisamente aos denunciantes, que se tinham dirigido a nós para um processo canônico, que comunicassem também às autoridades civis, no interesse das vítimas e para evitar outros crimes.

–Está prevista a prescrição pelos delicta graviora?
–Mons. Scicluna: Tocou num ponto crítico. No passado, quer dizer, antes de 1889, a prescrição da ação penal era uma norma alheia ao direito canônico. Para os delitos mais graves, só com o motu proprio de 2001 se introduziu uma prescrição de dez anos. Sobre a base destas normas, nos casos de abuso sexual, o decênio começa no dia em que o menor completa 18 anos.

–É suficiente?
–Mons. Scicluna: A prática indica que a norma de dez anos não é adequada para estes tipos de caso e seria desejável voltar ao sistema precedente, em que os delicta graviora não prescreviam. A 7 de novembro de 2002, o venerável servo de Deus João Paulo II concedeu a este dicastério a faculdade de revogar a prescrição caso por caso, perante um pedido motivado por parte do bispo, e a revogação normalmente se concede.

(Por Gianni Cardinali. Tradução de Alexandre Ribeiro)