segunda-feira, 5 de abril de 2010

Clima artificial de pânico moral

Por Rafael Navarro-Valls


Um tribunal de Haia decidiu em julho de 2006 que o partido pedófilo “Diversidade, Liberdade e Amor Fraternal” (PNVD na sigla em holandês) “não pode ser proibido, já que tem o mesmo direito de existir que qualquer outro grupo”. Os objetivos desse partido político eram: reduzir a idade de consentimento para relações sexuais a 12 anos, legalizar a pornografia infantil, a exibição de material pornográfico pesado na televisão em horários diurnos e autorizar a zoofilia. Eram porque o tal partido fechou esta semana. Ao que parece, um fator decisivo para isso foi a “dura campanha” levada a cabo em todas as frentes, inclusive na internet, pelo sacerdote católico F. Di Noto, implacável na sua luta contra a pedofilia.

Essa boa notícia – cujo protagonista é um sacerdote católico – coincide com outra ruim, também protagonizada por sacerdotes. Refiro-me à tempestade midiática desencadeada pelos abusos sexuais cometidos por alguns clérigos contra menores de idades. Eis os dados: 3.000 casos de sacerdotes diocesanos envolvidos em delitos cometidos nos últimos cinquenta anos, embora nem todos tenham sido declarados culpados pela lei. Segundo Charles J. Sicluna – como que um fiscal geral do organismo da Santa Sé encarregado desses delitos –: “60% dos casos são de «efebofilia», ou seja, de atração sexual por adolescentes do próprio sexo; 30% são de relações heterossexuais, e 10%, de atos de pederastia verdadeira e própria, isto é, casos de atração sexual por crianças impúberes. Estes últimos somam trezentos aproximadamente. Um já seria muito, mas também temos de reconhecer que o fenômeno não é tão difundido como dizem”.

Com efeito, se levarmos em conta que hoje existem cerca 500.000 sacerdotes diocesanos e religiosos, os números – sem deixar de ser tristes – constituem uma porcentagem em torno de 0,6%. O estudo científico mais sólido que conheço feito por um autor não católico é o do professor Philip Jenkins, Pedophiles and Priest - Anatomy of a Contemporary Crisis (Oxford University Press). Sua tese é de que a proporção de clérigos com desordens sexuais é menor na Igreja Católica que em outras confissões. Sobretudo, é muito menor que em outros modelos institucionais de convivência organizada. Se tais comportamentos chamam mais a atenção na Igreja Católica hoje do que antes, é porque a organização de Roma permite recolher informações, contabilizar e conhecer os problemas com mais rapidez que em outras instituições e organizações, confessionais ou não.

Há dois exemplos recentes que confirmam as análises de Jenkins. Os dados fornecidos pelas autoridades austríacas indicam que, num mesmo período de tempo, os casos de abusos sexuais ocorridos em instituições vinculadas à Igreja foram 17, ao passo que em outros ambientes foram 510. Segundo um informe publicado por Luigi Accatoli (um clássico do Corriere della Sera), dos 210.000 casos de abusos sexuais registrados na Alemanha desde 1995, apenas 94 estão relacionados com pessoas e instituições da Igreja Católica, o que representa 0,045% do total.

Suspeito de que há um clima artificial de “pânico moral” em criação, de que faz parte certa pandemia midiática ou literária centrada nos “desvios sexuais do clero”, convertido numa espécie de pântano moral. Não deixa de ser uma prática já conhecida, mas que nos últimos dias passou dos limites quando vieram a público os crimes cometidos na Alemanha, na Áustria e na Holanda. A campanha faz lembrar as lendas negras sobre o tema na Europa Medieval, na Inglaterra dos Tudor, na França revolucionária ou na Alemanha nazista.

Concordo com a observação de Jenkins: “a propaganda permanente da pedofilia foi um dos meios de propaganda e perseguição utilizados pelos políticos alemães na sua tentativa de destruir o poder da Igreja católica, especialmente no âmbito da educação e dos serviços sociais”. Himmler fez a acusação de que “nenhum crime cometido pela Igreja carecia de perjúrio, do incesto ao assassinato sexual”, comentando ainda que ninguém sabe ao certo o que se passa “por detrás das paredes dos mosteiros e da fileiras de Roma”. Como então, hoje também misturam dados e fatos com insinuações e equívocos intencionais. No final das contas, a impressão é que a única culpada dessa triste situação é a Igreja católica e sua moral sexual.

Assim, fica evidente que o problema é grave o suficiente para que abordá-lo diretamente. Encontremos as suas causas. Devo admitir que me chamou a atenção a ênfase que Bento XVI pôs nas suas repetidas condenações desses abusos durante sua viagem aos Estados Unidos. Os analistas esperavam alguma referência ao tema. Mas o fato de ele aludir quatro vezes aos escândalos me surpreendeu. Na verdade, essa questão tem suas raízes nos anos sessenta e setenta, mas eclode no começo do novo milênio, com os pedidos de indenização por parte das vítimas. Algo, pensava eu, pertencente ao passado. A um passado que coincidiu com os calores da revolução sexual dos anos sessenta. Foi então que se descobriu entre outras “filias” e fobias, a “novidade” da pedofilia, mirando, entre outros objetivos, da demolição das “muralhas” levantadas para impedir o contato erótico entre adultos e menores. Quem não se lembra – naqueles anos – de Mrs. Robinson e Lolita...? Se cavarmos um pouco descobriremos que alguns dos mais inflexíveis “moralistas” atuais, foram apóstolos ativos da liberação sexual dos anos sessenta e setenta.

Essa revolução marcou uma cultura e a sua época, deixou um sulco profundo, que contagiou também certos ambientes clericais. Assim, algumas Universidades católicas da América e da Europa passaram a transmitir conceitos equivocados da sexualidade humana e da teologia moral. Como aconteceu com toda uma geração, alguns seminaristas não ficaram imunes a isso e acabaram por agir indignamente. João Paulo II combateu essa podridão com energia, revogando a licença de alguns professores dessas Universidades, dentre eles Charles Curran, expoente icônico da corrente.

Bento XVI, não obstante as raízes antigas do problema, decidiu tratar com tolerância zero uma questão que mancha a honra do sacerdócio e a integridade das vítimas. Por isso, as muitas referências ao tema nos Estados Unidos e a sua rápida reação, convocando em Roma os responsáveis assim que o problema eclodiu nalgumas dioceses irlandesas. De fato, acaba de tornar-se pública uma dura carta à Igreja na Irlanda em que o Papa chama de “traidores” os culpados dos abusos e anuncia, entre outras medidas, uma rigorosa inspeção em dioceses, seminários e organizações religiosas.

Acaba sendo sarcástica a tentativa de envolver em escândalos sexuais algum dos sacerdotes da diocese governada pelo então arcebispo Ratzinger. Ainda mais quando sabemos ter sido justamente o cardeal Ratzinger que, como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, assinou em 18 de maio de 2001 a circular “De delictis gravioribus” (“Sobre oscrimes mais graves”) que previa duras medidas contra esse tipo de comportamento. O próprio fato de reservar à Santa Sé o julgamento a respeito dos casos de pedofilia (e também dos atentados contra os sacramentos da Eucaristia e da Confissão) reforça a gravidade em que ele os têm, bem como a determinação de que o juízo não seja “condicionado” por outras instâncias locais, potencialmente mais influenciáveis.

Além do mais, em todos os ambientes há ovelhas negras. Nigel Hamilton escreveu o seguinte sobrea presidência dos EUA: “Na Casa Branca já tivemos estupradores, galinhas, e, usando um eufemismo, pessoas com preferências sexuais pouco habituais. Tivemos assassinos, escravagistas, corruptos, alcoólatras, viciados em jogo e em todo ot ipo de coisa. Quando um amigo perguntou ao presidente Kennedy por que permitia que a luxúria dessa gente interferisse na segurança nacional, ouviu: “Não posso evitar”.

A Igreja é uma das poucas instituições a não fechar janelas nem portas diante do problema até passar a tormenta. Não se encolheu sobre si mesma “até que os bárbaros voltem aos bosques”. Encarou o problema, endureceu a sua legislação, pediu perdão às vítimas, pagou indenizações e foi implacável com os agressores. Denunciemos os erros, sempre, mas sejamos justos com aqueles que querem sim – diferentemente de Kennedy – evitá-los.