segunda-feira, 5 de abril de 2010

Celibato e pedofilia

Por Heitor de Paola

A respeito do celibato, Heitor de Paola afirma: Embora não sendo católico, entendo perfeitamente esta escolha e, se for genuína e abraçada com fé, nada tem a ver com repressão e pedofilia. Pelo contrário, esta está ligada à homossexualidade, considerada por Freud - e por mim - como uma perversão.


Pergunta um leitor que muito colabora enviando links, correções e comentários pertinentes: 'Prezado Heitor: sou católico e estou muito preocupado com o surgimento de tantas denúncias de pedofilia por parte de padres da minha Igreja. Fiquei estarrecido quando li de um articulista que se diz católico que a causa deve ser o celibato. Decorreria da falta de sexo permitido e adequado e da vivência com crianças sob seus cuidados, o que despertaria violentas paixões pervertidas. Ele defende o fim do celibato como parte da solução. Como sei que você é psicanalista, pergunto: o que a psicanálise tem a dizer sobre isto? Especificamente o conceito de repressão sexual levantado por Freud poderia ser uma explicação?'

Todos que me lêem sabem que sou avesso a introduzir meus conhecimentos profissionais terapêuticos em assuntos deste tipo. No entanto, após responder ao leitor e face à saraivada de processos que já atingem a pessoa do Papa e às explicações charlatanescas como a mencionada relação entre os dois fenômenos acima, creio ser chegada a hora de prestar alguns esclarecimentos e ir além de uma simples resposta a este assunto específico.

O QUE A PSICANÁLISE PODE E NÃO PODE

Em primeiro lugar, a psicanálise não tem o que dizer sobre coisa nenhuma, já que não é um ser pensante e falante, mas apenas um corpo de teorias muito divergentes entre si sobre o funcionamento da mente humana. O mesmo tenho a dizer da ciência: as afirmações 'a ciência comprova que' ou 'a psicanálise nos demonstrou que' não têm nenhum valor, pois sempre se trata da opinião de um cientista ou de um psicanalista, ou de um grupo de cientistas ou psicanalistas. Isto quando não é pior ainda, quando não passa da eructação de asneiras por parte de pessoas que até podem ter os títulos, mas não passam de charlatães, de homens que falam javanês (apud Lima Barreto). O Paraninfo de minha turma médica, Amílcar Gigante, ensinou-nos que existem dois tipos de 'médico': os verdadeiros médicos, que vivem para a medicina, e os bacharéis em medicina, que vivem da medicina. Posso dizer o mesmo dos 'psicanalistas de jornal ou da TV', sempre a postos para emitirem a 'visão psicanalítica' de qualquer coisa ou dar conselhos sentimentais em revistas da moda, quando suas vidas pessoais, freqüentemente, são um verdadeiro desastre nestas áreas. Antes de dar pitaco na vida dos outros é melhor olhar para a sua própria, seguindo o velho ditado 'macaco, olha o teu rabo'!

Os instrumentos que adquiri na minha vida profissional, me ensinaram que antes de emitir qualquer opinião sobre uma pessoa devo conhecê-la o mais profundamente possível, por isto, e não por razões pecuniárias como muitos nos acusam, um tratamento psicanalítico dever ter uma alta freqüência de sessões e levar vários anos. Segue-se que as interpretações que dou a um paciente, servem para aquela pessoa específica naquele dado momento, o que não me autoriza a generalizar para toda a humanidade. O que pode ser generalizado, a meu ver, é muito pouco, do qual o mais importante é a descoberta de Freud do inconsciente reprimido. Velho conhecido de todas as escolas filosóficas, o inconsciente sempre foi um dado importante, mas coube a Freud descobrir que algo que já foi consciente pode se tornar inconsciente por diversas razões que fazem com que uma pessoa se apavore ou fique repugnada com certos pensamentos e sentimentos desagradáveis ou ameaçadores. Isto é muito comum na mente confusa das crianças, daí decorrendo a nossa conhecida amnésia infantil: as lembranças das primeiras fases da vida são muito raras em qualquer pessoa.

AS INCURSÕES DE FREUD POR OUTRAS ÁREAS

Com a mesma veemência com que defendo e me utilizo das descobertas de Sigmund Freud sobre a clínica e a técnica, critico suas incursões por terrenos para os quais a psicanálise pouco ou nada tem a dizer, como a antropologia, a sociologia e, principalmente, as religiões. Parece-me que Freud, como muitos que receberam uma educação católica demasiadamente rígida, revoltou-se contra a ortodoxia judaica na qual foi criado e inventou um Moisés egípcio (Moses and Monotheism), atacou todas as religiões como se fossem somente expressões coletivas de neurose (The Future of an Illusion) e baseou o desenvolvimento humano numa controversa teoria sobre o 'jantar totêmico' (Totem and Taboo).

Não obstante, muitas das idiotices que são atribuídas a ele não são de sua lavra, como por exemplo, a teoria da repressão sexual em voga. Devido às distorções da Escola de Frankfurt, principalmente Herbert Marcuse, Wilhelm Reich e Erich Fromm, acredita-se que esta teoria é uma crítica à repressão sexual burguesa e que Freud postulava a desrepressão como a única saída para uma vida sadia. Nisto se baseou a contracultura. Nada mais errôneo. Freud não foi um crítico da sociedade burguesa e ao contrário do que se afirma, considerou a repressão como o mecanismo civilizatório par excellence: no citado Totem and Taboo e nos textos Instintics and its Vicissitudes e Repression, de difícil compreensão para leigos, afirma categoricamente que sem repressão dos impulsos sexuais e agressivos a convivência do homem em sociedade seria impossível.

PSICANÁLISE E MORAL

Outra crítica improcedente que se faz à psicanálise é a de ser amoral. O correto é que o psicanalista deve se abster de julgamento moral sobre o material dos pacientes. É bem verdade que até a década de 20 Freud não sabia como inserir as questões morais na sua teoria, toda ela baseada, até então, nas camadas mais profundas da mente, o Es, traduzido pelo tradutor oficial para o Inglês, Strachey, por Id. Mas Es [i] é muito mais simples. Desde Beyond the Pleasure Principle Freud começa a introduzir uma mudança em sua teoria, formulando o que se costumou chamar de Psicologia do Ego, culminando no livro The Ego and the Id (Das Ich und das Es) . Mais uma vez uma correção da tradução para o Inglês: Freud usava Ich (simplesmente eu) e Überich (acima de mim, super-eu) para o que Strachey traduziu por Ego e Superego. Esta última é a instância moral, que representa dentro da mente os ensinamentos dos pais, adultos que convivem com as crianças, e mestres. Freud dizia que o Ich era uma espécie de gerente que precisava harmonizar as exigências instintivas com as morais e com as possibilidades existentes na realidade externa. A principal função da instância moral, Überich, é a instalação da culpa, sentimento terrível, mas fenômeno sine qua non para o desenvolvimento sadio do indivíduo e não como hoje é visto, algo a se evitar, pois os desejos devem ser todos satisfeitos, segundo a modernidade: um mundo no qual não somos culpados de nada. É claro que a culpa será sempre dos outros, que atrapalham a plena realização dos desejos, um mundo paranóide, persecutório, um mundo psicótico, pois a fronteira entre a culpa e o delírio persecutório marca o limite entre normalidade ou neurose e a plena psicose.

Portanto, o que se convencionou chamar egolatria, como o império dos impulsos e desejos, ao menos em termos psicanalíticos está errado, mais apropriado seria Es-latria: o mundo psicótico em que já vivemos.

PSICANÁLISE: IMANÊNCIA E TRANSCENDÊNCIA

O Überich foi o mais próximo que Freud chegou de reconhecer algo 'acima do eu' e mesmo assim com representante de pessoas concretas e de uma vaga 'herança genética'. Um psicanalista não pode se pronunciar, enquanto tal, a respeito do que transcende a mente humana. Muito embora a palavra usada por Freud para a mente fosse Seele (alma) a tradução mais uma vez pecou traduzindo-a por psique. Neste caso o tradutor tinha razão, pois Freud não usava Seele como alma, espírito, ânima, mas sim com um significado bastante terreno. Muitas vezes me deparo no meu trabalho com a dificuldade de entender em termos puramente psicológicos o fenômeno da Fé e dos milagres. Depois de muito pensar concluí que não é uma dificuldade minha, mas que tais fenômenos estão além das possibilidades de explicações puramente psicológicas imanentes, encontrando-se num terreno que transcende a elas.

PSICANÁLISE E AS PERVERSÕES SEXUAIS

Outra controvérsia com setores conservadores e religiosos é a teoria da Sexualidade Infantil, apresentada por Freud em seu Three Essays on the Theory of Sexuality, de 1904[5]. A controvérsia se dá porque a teoria é vista com olhos adultos, como se Freud tivesse dito que as crianças pensam em sexo como nós adultos pensamos - e praticamos - e não como Freud descreveu: uma visão confusa e extremamente ameaçadora exatamente porque, se existem impulsos e desejos ainda não existem os instrumentos físicos e psíquicos para entender e satisfazer. O ditado 'mais confuso e apavorado do que cego em tiroteio' expressa bem a situação 'sexual' das crianças: o tiroteio são os desejos e impulsos desconexos que constituem a chamada fase polimorfo-perversa da sexualidade. Some-se a isto as mentiras que os adultos contam sobre o assunto sob o manto de um moralismo absurdo, sem compreender que o verdadeiro desenvolvimento moral só pode ser dado pela honestidade com que todas as perguntas e dúvidas forem esclarecidas pelos mais velhos. Antes que me entendam mal esclareço: sou absolutamente contra a 'educação sexual' em qualquer idade. Estou me referindo a responder honestamente sempre que as crianças pedem uma explicação, o que não implica em enfiar explicações não solicitadas goela abaixo dos bambini.

O conceito de perversão é o de desvio do desenvolvimento psico-sexual rumo à heterossexualidade adulta e à existência simultânea de desejo sexual ligado ao amor adulto pela pessoa desejada. Isto não é 'moralismo burguês' como outra vertente, a revolucionária, ataca aos psicanalistas, mas a felicidade plena só pode ser obtida através desta ligação entre amor e sexo.

Voltando ao tema do título: é este desenvolvimento plenamente adulto que permite que a escolha amorosa não se limite a pessoas, mas possa se expressar em relação a ideais religiosos. Portanto, segundo entendo, o celibato pode ser uma genuína opção adulta por um ideal mais nobre, como seguir os passos de outros ou Outro que assim optaram para melhor servir a Deus.

Embora não sendo católico, entendo perfeitamente esta escolha e, se for genuína e abraçada com fé, nada tem a ver com repressão e pedofilia. Pelo contrário, esta está ligada à homossexualidade, considerada por Freud - e por mim - como uma perversão - um desvio originado na fase polimorfo-perversa - e não como uma opção sexual.

BEYOND PSICHOLOGICAL EXPLANATIONS

Excetuando-se esta falsa defesa da Igreja que vê nas suas práticas a culpa pelos ataques que tem recebido, o assunto ultrapassa as explanações puramente psicológicas. O que é certo é que a Igreja Católica está sendo alvo de um ataque maciço contra o qual não está sabendo se defender. Isto porque a melhor defesa é o ataque, é a denúncia de seus detratores, é a denúncia de que os cristãos estão sendo alvos da mesma chusma que ataca os judeus, seja como anti-semitismo aberto, seja como anti-sionismo. O alvo principal é a própria Igreja, é um movimento claramente laicista, como denunciado pelo senador italiano Marcelo Pera. Pretende-se atribuir à Igreja como um todo a culpa pelas ações individuais de alguns padres e nisto a psicanálise vem em socorro da Igreja: a culpa, conseqüentemente o pecado, é individual e não coletiva.

E de quem é? Certamente nada tem a ver com o celibato, mas sim com a infiltração de elementos do movimento gayzista nos seminários, assim como a infiltração de comunistas na Demonologia da Libertação. Se culpa cabe à Igreja ela está relacionada à permissibilidade de seleção de seminaristas e, secundariamente, a falta de denúncia deste fato e expulsão dos mesmos pervertidos de seu seio. Chega de tolerância 'cristã', pois o próprio Jesus expulsou os vendilhões do Templo!


Nota:

[i] Segundo o Michaelis Alemão-Português: Es é pronome pessoal da terceira pessoa do singular neutro (nominativo e acusativo). Substitui um substantivo neutro, antecipa o objeto ou faz referência ao predicado ou a toda uma oração subordinada. Entra como sujeito na descrição de eventos impessoais (es regnet / chove). Na voz passiva substitui man+voz ativa (es darf nicht geraucht werden / não é permitido fumar). Finalmente pode ser objeto meramente fomal (er hat es weit gebracht / chegou longe).


publicado em Mídia Sem Máscara